Do quarto para a rua - pensando Hertzberger

 

Na intenção de ocupar, querendo pensar uma outra palavra para a mesma ação, estar, habitar, sim. Dentro do corpo de baile tivemos que nos retirar e guardar, o corpo ficou de fora do baile. Corpo do baile de dentro de casa. Corpo do nosso baile que é cada um. Uma ocupação diferente, um habitar diferente. Cada casa pode ser um corpo, cada corpo pode ser uma cidade inteira. O corpo parece muito grande e talvez pesado. O baile vai virar um país?

Marina Lima já dizia: “tudo em você é full gás”, ou fugaz? Talvez esse seja o pulo do gato. Na escrita livre, penso a casa livre também, ocupar a casa livre. Na possibilidade de mudar sempre os bailes e estar cada vez mais dentro do samba. Seria o samba a ocupar o baile ou o baile a ocupar o samba? No molejo dos corpos quem ocupa é samba, e ficam ocupados até a morte, ou até o próximo. Seria o samba fugaz? Ou full gás?

A presença é primordial. A experiência sem presença pode ser o vazio, a inabitação. A grande questão um dia foi pensar o ser, quem eu era, para então pensarmos o nós. Mas inconscientemente antes do eu veio o nós, o “eu” é novo, é coisa da modernidade, bem depois do corpo e então do baile. O corpo de baile já existia, depois que quiseram dividir e ter o cada-um. Se o cada-um forma o corpo, o que forma o cada um? O cada-um é uma casa? Tem quantos quartos? Tem varanda?

Dentro da casa, o quarto ficou cheio. Lotado. Ocupação máxima. Com certeza esse espaço de apartamento, ou apertamento, não foi planejado para quatro pessoas. Talvez caibam três. Duas com certeza ficariam bem. A palavra “dois” é plural ou singular? De dentro do quarto nos sentimos pequenos, algumas cores dão vida aqui. Houve um momento onde tudo era um pouco amarelo, uma cor de dente que bebeu muito café e fumou muitos cigarros. Mas talvez seja um amarelo cor de doce de pavê, meio sem graça, mas que sempre tem alguém que gosta. A forma retangular também não ajuda tanto na criatividade, tudo parece muito reto e ainda tem uma viga um pouco sem sentido e paredes frágeis que parecem segurar todo o prédio, mas que para isso ele teve que deixar todos os sons passarem por ela, como se fosse uma concessão ou talvez um feitiço. Trago seu amor em 3 dias, mas seus vizinhos irão ouvir tudo, e você também.

Na hora de dormir, parece que todos precisam ir juntos realizar essa etapa, já que o quarto fica todo ocupado e como já disse, não é um apartamento para quatro pessoas. A mesa pequena que foi colocada como uma solução para encobrir uma necessidade já não é mais abaixada, recolhida, tem hora que cansa. Depois de alguns anos o colchão fica velho e a espuma encolhe.

Dentro do baú que fica em baixo da cama box, todas as esculturas e peças tiveram que ser guardadas. Depois que o amarelo-dente-de-fumante foi embora, veio o branco-gelo que trouxe um pouco mais de conforto, mas proibiu qualquer gravura colada nas paredes. Não é tão possível brincar de galerista no quarto mais, nem de artista. Muito menos de decoradora ou de criança. O máximo que foi possível é um quadro de cortiça para possíveis memórias e o cartaz emoldurado de uma peça que foi apresentada no MALBA em algum tempo, “te quiero tanto que no sé” é seu nome.  Quería amar tanto y saber. Talvez esse quarto tenha sido um quarto de passagem e com certeza já passou por algumas cores, encontramos alguns resquícios de uma tinta rosa horrorosa respingada no chão. Na trama a cor foi por diversas vezes modificada, mas o feitiço da urdidura continuou o mesmo. Me questiono o por que de utilizar materiais enfeitiçados. O que queríamos era deixar o espaço. Queremos.

A prosperidade que estimulou o individualismo nos permite ouvir a mãe da Antonela discutindo com o ex-marido sobre a pensão ou os gritos quando o Flamengo mais uma vez faz um gol. O baile sai do espaço do apartamento e invade a quadra toda. Nesse bairro talvez alguém tenha ouvido falar do Hertzberger mas temos que reconhecer os recortes de classe que existem. As cartas da prisão continuam sendo deixadas na portaria, os avisos para não deixarem o portão aberto e depois se o carro ou a moto de alguém foi roubado não ir reclamar com o sindico que só fica a cuidar das flores do jardim, mas se alguém passar e colher alguma é roubo. Sim, roubo. O que Hertzberger pensaria sobre roubo de flores do jardim que dá para um espaço público. Seria então o jardim o intervalo entre o público e o privado? O jardim já não é mais público.

Na passagem da escada para o hall de entrada, um portão. Na saída do hall para a outra escada, um portão. Na saída da outra escada para a rua, um portão. A atmosfera da casa é a atmosfera da casa. A casa e a rua estão por diversas vezes separadas, os vizinhos só existem como sons. Ninguém vê ninguém, ninguém enxerga ninguém aqui. É um prédio sem corpo, apenas com o baile. Cada cidade é ocupada por um som, cada pessoa é full gás. Todos estão virados para nenhum. A piscina do vizinho já não pega mais sol.

Depois do portão para a rua, quem manda na rua? O Pegasus voa quase todos os dias. A experiencia pode ser assédio e medo, ou desejo por casadinhos da padaria. Quem sabe até o desafia de passar pela praça na maior velocidade possível sem ser abordada. As crianças são convidadas a brincar na água que sai da torneira e ocupam a rua agora com o seu baile e suas pipas, mas sem nunca bronquear. Se bronquear o prédio todo vai ouvir.

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